domingo, dezembro 18, 2005

Escrito pelo meu amigo Flávio Megarex

Este texto é uma resposta minha numa discussão numa lista de temas espiritualistas. Eu comecei dizendo que não me importo de sair de Sansara (a roda da reencarnação), afinal ainda há muito o que se fazer por aqui. Falei que gostaria de estudar mais música, conhecer mais gente, estudar física, matemática, filosofia, viajar, tocar e, principalmente, ser o locutor de ofertas do Extra Supermercados.

Um senhor muito bem humorado e de boa escrita me respondeu com um belo texto, que terminou assim:


Bene wrote:
Mas agora que sabemos que segundo o carma uns renascem como locutores de SM e outros como suas vítimas, não mais nos apoquentaremos. Renasceremos nós como surdas baixelas Tramontina. Ou como sorvetes Kibon, que pelo menos se acabam de forma mais agradável...;-)Bene

E esta foi minha resposta:

Caro Bene,De forma alguma intenciono equiparar-lhe em estilo, sagacidade ou elegância, e tampouco convertê-lo à minha crença, mas me sinto confortável em ao menos expor-lhe o cenário completo, para que não fitemos apenas a ponta do Iceberg.Senão vejamos:
Lá estava eu, num final de tarde sombrio, entediado com a lista de compras do mês, tentando me enganar que me divertia comparando o preço do Feijão Pantera com outros de menor quilate, passeando entre caixas de ovos, latas de atum, sacos de arroz e prateleiras com todas as combinações possíveis de sabores de iogurte.

Num repente, ao ligarem os auto-falantes, despertei de um estado de sonambulismo para um imediato estado de bem-aventurança, embalado por aquela imponente e onipresente voz de estagiário de Silvio Santos, que invadia todos os corredores. Confesso que ao som daquela voz (que faria ninar o mais selvagem javali) senti-me mais feliz e lépido, talvez pelo timbre, talvez pelo modo de combinar e entoar as palavras. A primeira oferta que escutei naquele final de tarde foram 8 peças de um DVD que, segundo nosso locutor, “começava a tocar se o cliente apenas se aproximasse do aparelho com um CD pirata...” Ainda tocava “CD-R, CD-RW, DVD-R”, e reproduzia CD com fotos digitais, pois o aparelho “trabalha com o sistema JPG”. Detalhe: ele usou o termo CD pirata, e logo depois reformulou a frase tentando justificar o uso do termo.

Não preciso dizer que as 8 peças se esgotaram imediatamente, mas não tardou a ouvirmos nova oferta. Nosso mestre de cerimônias dizia “não se conformar que nós usaríamos aquela velha tesoura enferrujada para cortar nossos cachos de uva no final do ano”. A promoção era de uma tesoura Tramontina. Eu nunca imaginei ser necessário utilizar uma tesoura para cortar cachos de uva, no entanto o sujeito prosseguia tão empolgado com sua narrativa que me despertou uma enorme curiosidade em ver ao vivo o proprietário de tão especial aparelho vocal.

Procurei em quase todos os corredores, mas não o encontrei. Um grande mistério. Ele sempre dizia pra pegar os produtos “com ele”, mas nunca dizia onde estava. Procurei-o enquanto tentava encontrar o papel toalha, mas também não tive sorte. Ouvi muita gente dizer que o tal sujeito tinha pouco mais de 64 cm de altura. Seria incrível, se comparado à qualidade da voz que ouvi. Desisti e continuei as compras.

A próxima oferta, no entanto, fez o destino desviar seu curso de forma considerável. Eram alguns sabores de sorvete da Kibon (pote 2L) que, se adquiridos naquele exato instante, custariam apenas 9 reais e ainda dariam direito a uma taça para sorvete. Neste momento, me deparei com um cardume de senhoras enlouquecidas, famintas como jaguatiricas antes do pôr-do-sol, algumas com seus respectivos brasilinos* à tiracolo, passando pelo corredor onde me encontrava (e os adjacentes) em corrida desenfreada, derrubando latas de pêssego em calda e caixas de gelatina, trocando cotoveladas e toda a sorte de impropérios (não adequados para mulheres daquela idade). Aquela manada enfurecida de donas-de-casa avançava pelo corredor central como búfalos numa plantação de papoulas, esmigalhando qualquer vestígio de vida que lhes impusesse resistência.

Ao se amontoarem perante o ilustre ofertante/locutor, uma senhora mais avantajada, no afã de garantir sua sobremesa, praticamente “fagocitava” a franzina colega da frente, uma oriental que nitidamente sentia-se sufocada e afrontada, já que os braços pelancudos da outra lhe massageavam as orelhas com vigor. Além disso, a agente “fagocitante” trajava vestido de alças, propiciando à colega oriental inalar o odor da transpiração que se via nitidamente presente.

(Neste lanço, calha à fiveleta autorizado escólio da lavra do venerável mestre Kaganda Yandanda, guru mexicano tocador de pífano: “quem nasce desordeiro, morre desordeiro”.)

Em meio a esse pandemônio, nosso mestre de cerimônias (que eu não podia enxergar por detrás da massa humana de senhoras) informou que o brinde não era “uma taça DE sorvete”, e sim “uma taça PARA sorvete”. Não sei se foi por causa da nova informação ou se por puro estado de stress, mas um segundo após o locutor concluir sua última frase pude ver nossa amiga oriental se desfazer dos braços de sua algoz com raiva no olhar. Esta pequena moça oriental, que não dispunha de estrutura óssea intimidante, achou por bem sacar de seu carrinho uma peça de frango congelada e atirar contra o ofertante. A peça voou de sua mão acompanhada de uma catadupa de palavras de baixo calão (conhecidas e desconhecidas na Coréia do Norte) mas, infelizmente, não acertou o alvo desejado. Ao invés disso, passou de raspão na cabeça de um brasilino* pertencente a uma das primeiras da fila/tumulto. O aludido brasilino* começou a chorar copiosamente e ensaiou um regurgito no colo da mãe. Esta ação gerou um carma instantâneo, aumentando ainda mais os movimentos de agressão e intolerância entre as participantes. Mesmo nesse momento eu não conseguia enxergar nosso ilustre Mestre da oratória. Talvez ele realmente tivesse menos de um metro de altura.

E foi assim, contemplando este maravilhoso espetáculo da fauna humana, que me afastei vagarosamente e fiz uma prece silenciosa. A prece foi mais ou menos assim:

“Senhor Deus, por favor, não me impeça nunca de reencarnar aqui. Prometo fazer tudo de errado que estiver ao meu alcance para continuar renascendo aqui e participando do espetáculo humano.

E, se não for pedir muito, permita-me na próxima vida ser um dos seus Escolhidos.

Permita-me ser um dos Iluminados.

Permita-me renascer como Locutor do Extra Supermercados.”

Flavio

* brasilino – filho pequeno